domingo, maio 14, 2006

Une Saison en Enfer

«Outrora, se bem me recordo, a minha vida era um festim em que se abriam todos os corações, em que todos os vinhos fluíam.

Uma noite sentei a Beleza nos meus joelhos. – E achei-a amarga. – E injuriei-a.

Armei-me contra a justiça.

Fugi. Ó feiticeiras, ó miséria, ó ódio, a vós foi confiado o meu tesouro!

Consegui fazer dissipar-se no meu espírito qualquer esperança humana. Para estrangular toda a alegria, saltei sobre ela como uma fera.

Chamei os carrascos para lhes morder a coronha das espingardas enquanto morria. Invoquei os flagelos para me asfixiar com areia, o sangue. O infortúnio foi o meu deus. Estirei-me na lama. Sequei-me ao vento do crime. E preguei belas partidas à loucura.

E a primavera trouxe-me o riso medonho do idiota.

Ora, tendo-me encontrado muito recentemente prestes a dar a última fífia, pensei procurar a chave do festim antigo, onde talvez recuperasse o apetite.

A caridade é essa chave. – Esta inspiração prova que sonhei!

“Permanecerás hiena, etc…”, protesta o demónio que me coroara de tão amáveis papoilas. “Ganha a tua morte com todos os teus apetites, e o teu egoísmo e todos os pecados capitais.”

Ah! tomei demasiado daquilo: - Mas, caro Satanás, conjuro-vos, olhai-me menos irritado! e enquanto esperais as cobardiazinhas atrasadas, para vós que no escritor amais a ausência das faculdades descritivas ou instrutivas, arranco estas folhas medonhas do meu caderno maldito.»

Arthur Rimbaud, Une Saison en Enfer

*tradução: Maria Gil Moreira. Colecção Mínima – Ulmeiro

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