terça-feira, março 14, 2006

"Da Morte e Sobrevivência"

Ao fazer uma breve leitura da obra Morte e Sobrevivência de Max Scheler, deparei-me com um pequeno poema (de uma tribo do Nilo superior, os Dinka), que mostra o quão frágil é o nosso ser comparado com a esplendorosa e única criação de Deus (da qual fazemos também parte!).

No dia em que Deus criou todas as coisas,
criou o Sol;
E o Sol nasce, põe-se e regressa de novo.
Criou a Lua,
E a Lua nasce, põe-se e regressa de novo.
Criou as Estrelas,
E as estrelas nascem, põem-se e regressam de novo.
Criou o Homem;
e o homem surge, aparece na terra e não regressa mais.

sexta-feira, março 10, 2006

Levantam-se ventos de tempestade a sul…

Levantam-se ventos de tempestade a sul…

O tempo é algo em que se pode fixar um agora pontual, que é sempre diferente de dois pontos temporais, um dos quais anterior e o outro posterior. Isto é, apesar da sua ciclicidade o tempo nunca é o mesmo, qualquer que seja o lugar. E em última análise as sequências de tempo são de tal modo instantâneas que existência do próprio tempo se torna uma impossibilidade.

MACHINA HUMANÆ - Propedêutica Filosófica à Loucura Humana

«A filosofia cria o mundo a partir das suas próprias representações e não pode fazer de outro modo: a filosofia é este próprio impulso tirânico, a vontade espiritual de poder, de criar o mundo, de instituir a causa prima
Friedrich Nietzche


Supondo que a existência humana ultrapassa o mero cariz animalesco, supondo o homem dotado de consciência intelectual, supondo mesmo o homem pelo Homem; é preciso que o homem saiba ou julgue saber a razão da sua existência: a preservação e florescimento da espécie requer, a priori, a coragem da verdade, uma fé incondicional no poder do espírito enquanto móbil da vida. A crença na unidade através do tempo, ainda que incognoscível para nós, é um dos pré-requisitos do homem, pertença de um caminho teoricamente dogmático que procura estabelecer critérios eternos para aquilo que o Homem pode saber acerca do mundo, ainda que as bases do conhecimento humano mudem de geração para geração, tendo como único ponto fixo a própria história. Ora, a história de um objecto encontra-se íntima e subjectivamente dependente da concepção que dele se faz; encontrar pressupostos intemporais pode, portanto, revelar-se uma tarefa hercúlea, se não mesmo impossível.

Compreender assume-se, assim, como a meta genésica da humanidade e o conhecimento é verdadeiro poder, derradeira arma, por vezes letal, que se encontra somente ao alcance de uns poucos, sendo que a problemática maior reside, pois, na conceptualidade, na significação da palavra. De facto, cada um de nós pode descobrir a cada instante a inconsistência da verdade e contudo a qualquer momento podemos afirmar-nos detentores de uma verdade, ainda que parcial. Mas o que é então a verdade? É certo que a procuramos, mas porque motivo preterimos a não-verdade? Resta, então, perguntar a real existência dessa verdade, esperando que esta seja uma pergunta com resposta. Reconhecer a verdade é admitir que cada princípio nele contido é demonstrável em si mesmo e passível de ser questionado. Então, construir memórias é em si um passo fundamental para a verdade, a estratégia prima da sobrevivência. Credo quia absurdum ser da responsabilidade do homem optar a sua forma de vivência e com ela a inerente necessidade de descoberta pessoal. Porque será então que a maioria porfia no caminho da ignorância, optando pelo vulgar seguidismo, optando pela fácil certeza do presente, permanentemente ausente e que impede a rápida evolução da consciência? Quem vive na ignorância está condenado à linha de montagem, como um qualquer autómato programado sempre para a mesma monótona e degradante tarefa, consumido no acto repetitivo do quotidiano. Eis a nobreza do homem. Não será de uma nobreza superior aquele que em acessos de quixotismo, quem sabe delírios da realidade, não teme sucumbir à insensatez dos seus impulsos, mesmo que isso implique o silenciamento do intelecto, para depois renascer enquanto homem. Bravo é aquele cuja coragem anseia a verdade. Bravo é aquele cuja fé nasce no poder do espírito. Bravo é aquele para quem o essencial não é a verdade de uma premissa, mas que a premissa seja verdadeira para si.

Esta é uma época em que o pensar se tornou um capricho frívolo, uma época em que todo aquele que, na idiossincrasia do seu ser, luta por uma qualquer quimera consciencializadora é tido como um louco e todo seu êmbolo idealístico é considerado inválido. Esta é a época de todas as épocas; uma vez mais revisitamos os nossos erros passados, uma vez mais a constância nesses erros se acentua. Sim, a história tem servido para incrementar aquele que sempre foi um grave problema da Humanidade: o não-pensar. E o tempo não é nada; só existe como consequência dos acontecimentos que nele se desenrolam, e embora não seja absoluto nem haja absoluta simultaneidade a história acaba por se construir em ciclos que se repetem ocasionalmente. A falácia magna consiste no facto de os homens acreditarem possuir uma consciência inata, daí que não se esforcem muito para a alcançar. Incorporar conhecimento é uma tarefa fundamental que infelizmente ainda vive ofuscada sob os olhos humanos que insistem em não ver, em não perceber que os nossos erros vivem incorporados em nós, bloqueando a evolução. Sim existe uma consciência contudo ela está conspurcada, reportando toda elas aos erros passados. É preciso definir humanidade de modo a evitar a sua degeneração na obscuridade. Cada homem tem que definir em si mesmo a sua humanidade, reconhecer que o pensamento adquirido contém todas as ideias que gerações antes dele formularam e depois libertar-se, quebrar as correntes das suas proporções vitruvianas e desenvolver um novo processo de tomada de consciência. Liberto do seu cepticismo de escassos princípios o homem, enquanto indivíduo, pode desenvolver a sua própria apoteose humanista e considerar que o seu pensamento pode ser verdadeiro, aqui e agora, como concessão de um espaço ínfimo, infinito na sua existência. A evolução é feita através de mudanças, embora cada época procure aprofundar e fazer frutificar as velhas ideias. È condição sine qua non do Homem ser agente da mudança na eterna demanda pela verdade e evitar que o seu pensamento se vincule como velha ideia para depois combater aquilo que também ele já foi um dia: novo. O Homem não pode deixar de estar cônscio de que as «teorias resistem não necessariamente por serem verdadeiras, mas por serem as mais bem adaptadas ao estado contemporâneo do conhecimento (Popper)». E se o objecto (o Gengestand Kantiano) último da filosofia é o homem, então é da responsabilidade deste a formulação da sua própria consciência intelectual.

Etimologicamente filosofia é o amor pela sabedoria. Mas, que é a sabedoria se não a própria verdade, a coisa mais procurada do mundo e conquanto a menos digna de reflexão. É dever de todo o homem o progresso da inteligência, o aperfeiçoamento do próprio espírito. Construir filosofia implica, pois, antes de mais o hábito de bem pensar aliado à perca do hábito de mal pensar; há que considerar como falso todo o pensamento anterior para depois se proceder a profunda e aturada reflexão sobre as razões subjacentes ao questionamento desse pensamento. O Homem enquanto machina humanǽ tem que se desembaraçar da crença inata nas percepções sensoriais para depois construir um pensamento simultaneamente empírico e racional, um pensamento metafísico, visto ser, enquanto conhecimento das causas primárias e dos princípios elementares, o único capaz de se expor integralmente como um todo absoluto, susceptível, na sua versatilidade, de se considerar como não correctamente apreendido, pois ao determinar-se a priori o seu conteúdo e objecto, é viável, a posteriori, avaliar e questionar o conhecimento dele proveniente, quer enquanto cogito singular, quer como asserção fragmentária do todo. Como princípio fundamental da consciência intelectual a «metafísica é a ciência que opera, mediante a razão, a passagem do conhecimento sensível ao supra-sensível (Immanuel Kant)», sendo, como forma de conhecimento, a derradeira arma da filosofia, logo o seu primeiro princípio. Realizada esta condição ter-se-á realizado a verdade e com ela toda a sabedoria, pois a primeira verdade torna-se assim a regra de todas as outras verdades.

sábado, março 04, 2006

MACHINA HUMANÆ - Apoteose Humanista à Ciência

Existe pelo menos um traço comum a todas as sociedades humanas – a mudança, daí que a evolução e o desenvolvimento sejam, no fundo, nada mais nada menos que uma consequência do processo mutacional. E se “até este século, a mudança social foi tão lenta que passaria despercebida no período de vida de uma pessoa” [C.P. Snow], hoje em dia isso não é mais verdade, urgindo por isso abrandar um pouco para analisar e repensar a forma como o Homem se vê na sua sociedade.

Enquanto reflexo da natureza humana a Ciência começou inicialmente por ser uma tentativa pragmática de encontrar soluções e respostas para os desafios do dia a dia e acabou por se tornar no principal motor do progresso humano, daí que praticamente tudo o que caracteriza uma sociedade seja, no fundo, consequência da actividade científica (desde a mais rudimentar e ancestral à mais profissional e moderna). Pode, então, deduzir-se que directa ou indirectamente todas as sociedades estão dependentes da ciência para poderem subsistir, já que a evolução humana é em si indissociável da evolução da própria Ciência.

Contudo, apesar de indispensável, ao longo dos tempos a maneira como a Ciência era vista sofreu várias alterações e se na Idade Média era um “pecado” quase mortal e os seus adeptos condenados à fogueira, no séc. XIX a industrialização criou para ela uma visão triunfalista, enquanto que hoje em dia “a reflexão sobre os limites dos poderes da Ciência domina toda a análise séria das nossas sociedades” [J.-J. Salomon, Uma conversa com…]. De facto, e apesar de o conhecimento científico se assumir como o principal combustível do processo mutacional, existe uma necessidade crescente em repensar a Ciência e a sua integração na sociedade, porque se constata agora, mais do nunca, o quão ambígua e paradoxal ela pode ser.

Acontece, pois, que o paradigma científico por nós herdado é, actualmente, uma premissa falsa, e aquilo que a sociedade considerava válido há alguns anos é hoje tido como inexacto. E paradoxalmente, a verdade é que o principal responsável por isso mesmo é o processo científico/mutacional: se deles adveio muito do que hoje existe de positivo e de bom nas sociedades, não é menos verdade que essa mesma ciência é também responsável por um certo maquiavelismo. Como tal, é imperativo desenvolver “um pensamento capaz de conceber e de compreender a ambivalência, isto é, a complexidade intrínseca que se encontra no cerne da ciência” [E. Morin, Ciência com consciência]. Reformular a nossa bitola de valores e crenças sobre a ciência é, portanto, um passo fundamental rumo a uma melhor compreensão das sociedades e do próprio homem enquanto indivíduo particular. “Mas podemos interrogar-nos sobre se não será necessário procurar mais longe ou, socorrendo-nos de um termo da psicanálise, se não será necessário procurar nas profundezas” [E. Schatzman, A ciência ameaçada].

A verdade é que não existe um trilho que indique a forma como se deve ver a Ciência: não existem dicionários nem bíblias capazes de dizer o que é a Ciência. O máximo que poderemos fazer é estabelecer conjecturas e assumir que até um determinado ponto estamos munidos com a necessária independência (étnica e moral) para o fazer. E sendo eu, tal como todos nós, um filho da Ciência, tentarei aqui lançar algumas farpas com o máximo de idoneidade que me for tangível.

Como já vimos, o processo mutacional é uma constante das Sociedades. Contudo, apesar de fundamental, a evolução que lhe está inerente acabou também por se traduzir num desenvolvimento científico que se caracteriza por inúmeros traços negativos: a sobreespecialização e consequente fragmentação do saber, a manipulação política e económica, e a disjunção entre as ciências da natureza e as ciências do homem, são alguns adágios disso mesmo. Por exemplo, “a segurança que o cientista adquire, a justo título, no seu domínio, onde ele dispõe de meios eficazes de controlo do saber, leva-o facilmente a negligenciar a dificuldade e a complexidade de problemas mais gerais” [J-M. Lévy-Leblond, A ciência na ideologia]. Uma outra realidade deste progresso pernicioso prende-se com a observação minuciosa pela lupa da Sociedade a que toda a actividade científica é sujeita, não só pelos poderosos lobbies e interesses que tentam controlar e dominar o processo científico, mas também devido ao facto de a Ciência assumir, de dia para dia, um papel mais preponderante no funcionamento da própria Sociedade. E o que é facto é que se o método científico enquanto sistema organizativo do conhecimento foi o principal promotor do sucesso da Ciência (sobretudo nos últimos 3 séculos), é também o grande responsável pelo seu rotundo falhanço. Isto porque na sua essência o método científico é ele próprio uma técnica de manipulação, o que resulta inexoravelmente na incapacidade da ciência em controlar a sua própria estrutura de pensamento, daí que, em última análise, o progresso das certezas científicas seja responsável pelo progresso da incerteza, já que “o próprio da cientificidade não é reflectir o real, mas traduzi-lo em teorias mutáveis e refutáveis” [E. Morin, Ciência com consciência].

No complexo mundo contemporâneo, exige-se demasiado dos cientistas, dos políticos e até mesmo do público em geral, num processo em que a ciência enquanto técnica de manipulação contribui anacronicamente para o desenvolvimento dos poderes manipuladores (que tentam controlar essa mesma ciência). Efectivamente, esta é uma época em determinismo objectivista da Ciência ao desvalorizar a importância da liberdade subjectiva, acaba ironicamente por se traduzir num erro sistemático que revela simultaneamente toda a imponência e fragilidade da Ciência. Paradoxalmente, uma consequência disso é a própria necessidade de repensar a Ciência como tal, o que na maioria das vezes acaba por contribuir largamente para a sua mistificação e esoterização. E assim há duas perguntas que surgem naturalmente: será plausível questionar a natureza lógica da Ciência quando na maioria dos casos tal apenas contribui para um incremento da sua inconsistência? se a descoberta mais notável feita pelos cientistas foi a própria Ciência então porque é que no seu paradigma ela está repleta de falhas? E aqui voltamos à questão inicial: enquanto filhos da Ciência somos indissociáveis dela e por isso incapazes de lançar sobre ela um pensamento totalmente isente, pelo que acabamos por reflectir nela todas as nossas experiências pessoais mais ou menos imediatas.

Como tal, a maior das necessidades talvez não seja a de repensar a ciência, mas sim a de desenvolver e promover um auto-conhecimento mais apurado do conhecimento científico, pois um “novo modelo, com os seus novos conceitos, é concebido apenas por um acto de imaginação” [J. Bronowski, A ciência no novo humanismo].

com outros olhos...

A partir de hoje já poderão ver-me com outros olhos, aqui no Doca do Tempo. Espero também que no Doca do Tempo encontrem um verdadeiro exercício para a mente e se divirtam tanto como eu me divertirei a escrever nele.