sexta-feira, março 10, 2006

MACHINA HUMANÆ - Propedêutica Filosófica à Loucura Humana

«A filosofia cria o mundo a partir das suas próprias representações e não pode fazer de outro modo: a filosofia é este próprio impulso tirânico, a vontade espiritual de poder, de criar o mundo, de instituir a causa prima
Friedrich Nietzche


Supondo que a existência humana ultrapassa o mero cariz animalesco, supondo o homem dotado de consciência intelectual, supondo mesmo o homem pelo Homem; é preciso que o homem saiba ou julgue saber a razão da sua existência: a preservação e florescimento da espécie requer, a priori, a coragem da verdade, uma fé incondicional no poder do espírito enquanto móbil da vida. A crença na unidade através do tempo, ainda que incognoscível para nós, é um dos pré-requisitos do homem, pertença de um caminho teoricamente dogmático que procura estabelecer critérios eternos para aquilo que o Homem pode saber acerca do mundo, ainda que as bases do conhecimento humano mudem de geração para geração, tendo como único ponto fixo a própria história. Ora, a história de um objecto encontra-se íntima e subjectivamente dependente da concepção que dele se faz; encontrar pressupostos intemporais pode, portanto, revelar-se uma tarefa hercúlea, se não mesmo impossível.

Compreender assume-se, assim, como a meta genésica da humanidade e o conhecimento é verdadeiro poder, derradeira arma, por vezes letal, que se encontra somente ao alcance de uns poucos, sendo que a problemática maior reside, pois, na conceptualidade, na significação da palavra. De facto, cada um de nós pode descobrir a cada instante a inconsistência da verdade e contudo a qualquer momento podemos afirmar-nos detentores de uma verdade, ainda que parcial. Mas o que é então a verdade? É certo que a procuramos, mas porque motivo preterimos a não-verdade? Resta, então, perguntar a real existência dessa verdade, esperando que esta seja uma pergunta com resposta. Reconhecer a verdade é admitir que cada princípio nele contido é demonstrável em si mesmo e passível de ser questionado. Então, construir memórias é em si um passo fundamental para a verdade, a estratégia prima da sobrevivência. Credo quia absurdum ser da responsabilidade do homem optar a sua forma de vivência e com ela a inerente necessidade de descoberta pessoal. Porque será então que a maioria porfia no caminho da ignorância, optando pelo vulgar seguidismo, optando pela fácil certeza do presente, permanentemente ausente e que impede a rápida evolução da consciência? Quem vive na ignorância está condenado à linha de montagem, como um qualquer autómato programado sempre para a mesma monótona e degradante tarefa, consumido no acto repetitivo do quotidiano. Eis a nobreza do homem. Não será de uma nobreza superior aquele que em acessos de quixotismo, quem sabe delírios da realidade, não teme sucumbir à insensatez dos seus impulsos, mesmo que isso implique o silenciamento do intelecto, para depois renascer enquanto homem. Bravo é aquele cuja coragem anseia a verdade. Bravo é aquele cuja fé nasce no poder do espírito. Bravo é aquele para quem o essencial não é a verdade de uma premissa, mas que a premissa seja verdadeira para si.

Esta é uma época em que o pensar se tornou um capricho frívolo, uma época em que todo aquele que, na idiossincrasia do seu ser, luta por uma qualquer quimera consciencializadora é tido como um louco e todo seu êmbolo idealístico é considerado inválido. Esta é a época de todas as épocas; uma vez mais revisitamos os nossos erros passados, uma vez mais a constância nesses erros se acentua. Sim, a história tem servido para incrementar aquele que sempre foi um grave problema da Humanidade: o não-pensar. E o tempo não é nada; só existe como consequência dos acontecimentos que nele se desenrolam, e embora não seja absoluto nem haja absoluta simultaneidade a história acaba por se construir em ciclos que se repetem ocasionalmente. A falácia magna consiste no facto de os homens acreditarem possuir uma consciência inata, daí que não se esforcem muito para a alcançar. Incorporar conhecimento é uma tarefa fundamental que infelizmente ainda vive ofuscada sob os olhos humanos que insistem em não ver, em não perceber que os nossos erros vivem incorporados em nós, bloqueando a evolução. Sim existe uma consciência contudo ela está conspurcada, reportando toda elas aos erros passados. É preciso definir humanidade de modo a evitar a sua degeneração na obscuridade. Cada homem tem que definir em si mesmo a sua humanidade, reconhecer que o pensamento adquirido contém todas as ideias que gerações antes dele formularam e depois libertar-se, quebrar as correntes das suas proporções vitruvianas e desenvolver um novo processo de tomada de consciência. Liberto do seu cepticismo de escassos princípios o homem, enquanto indivíduo, pode desenvolver a sua própria apoteose humanista e considerar que o seu pensamento pode ser verdadeiro, aqui e agora, como concessão de um espaço ínfimo, infinito na sua existência. A evolução é feita através de mudanças, embora cada época procure aprofundar e fazer frutificar as velhas ideias. È condição sine qua non do Homem ser agente da mudança na eterna demanda pela verdade e evitar que o seu pensamento se vincule como velha ideia para depois combater aquilo que também ele já foi um dia: novo. O Homem não pode deixar de estar cônscio de que as «teorias resistem não necessariamente por serem verdadeiras, mas por serem as mais bem adaptadas ao estado contemporâneo do conhecimento (Popper)». E se o objecto (o Gengestand Kantiano) último da filosofia é o homem, então é da responsabilidade deste a formulação da sua própria consciência intelectual.

Etimologicamente filosofia é o amor pela sabedoria. Mas, que é a sabedoria se não a própria verdade, a coisa mais procurada do mundo e conquanto a menos digna de reflexão. É dever de todo o homem o progresso da inteligência, o aperfeiçoamento do próprio espírito. Construir filosofia implica, pois, antes de mais o hábito de bem pensar aliado à perca do hábito de mal pensar; há que considerar como falso todo o pensamento anterior para depois se proceder a profunda e aturada reflexão sobre as razões subjacentes ao questionamento desse pensamento. O Homem enquanto machina humanǽ tem que se desembaraçar da crença inata nas percepções sensoriais para depois construir um pensamento simultaneamente empírico e racional, um pensamento metafísico, visto ser, enquanto conhecimento das causas primárias e dos princípios elementares, o único capaz de se expor integralmente como um todo absoluto, susceptível, na sua versatilidade, de se considerar como não correctamente apreendido, pois ao determinar-se a priori o seu conteúdo e objecto, é viável, a posteriori, avaliar e questionar o conhecimento dele proveniente, quer enquanto cogito singular, quer como asserção fragmentária do todo. Como princípio fundamental da consciência intelectual a «metafísica é a ciência que opera, mediante a razão, a passagem do conhecimento sensível ao supra-sensível (Immanuel Kant)», sendo, como forma de conhecimento, a derradeira arma da filosofia, logo o seu primeiro princípio. Realizada esta condição ter-se-á realizado a verdade e com ela toda a sabedoria, pois a primeira verdade torna-se assim a regra de todas as outras verdades.

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