quinta-feira, abril 05, 2007

Pagar para respirar... por Inês Pedrosa

Em Portugal já há quem pague, e muito, para respirar – todos os portugueses que dependem de garrafas de oxigénio para viver pagam o valor máximo do IVA (21%) por esse luxo – a mesmíssima taxa que impende sobre os produtos de perfumaria ou as garrafas de uísque. Muito mais do que se paga por uma garrafa de vinho português (IVA de 12%). Destas coisas não se fala porque, na pós-modernidade sem tabus, o sexo vende-se como festa contínua e a juventude como obrigação eterna, mas a doença é tratada como, mais do que uma vergonha, uma prova de inferioridade. A morte de cancro noticia-se, eufemisticamente, como «doença prolongada» - e com o advento da sida e da Alzheimer a boataria e a má-língua sobre as enfermidades dos famosos tem atingido níveis absolutamente infra-humanos. O tom compungido e íntimo que certos «amigos» põem no relato pormenorizado das supostas misérias físicas dos seus próximos faz perder o ar ao mais contido. Há dias, ouvi a uma dessas almas: «Vais encomendar-lhe o trabalho, a sério? Pois, fulano é excelente, mas tem andado muito debilitado, não sei se dará conta do recado... Dizem que é uma pneumonia, mas, enfim, sabe-se lá se não será outra coisa...» Cada vez mais frequentes são também os comentariozinhos marginais sobre os vícios: «Sim, sim, é óptima - tem é aquela tendenciazinha para os copos, e para os cigarritos... Não dura muito, coitada.» Sobre os que respiram através de garrafas de oxigénio impende, por conseguinte, a suspeita de que não viveram segundo os Mandamentos da Santa Madre Saúde - provavelmente praticaram o pecado do fumo e, se assim foi, agora deixá-los pagar.

Os próprios doentes interiorizam esta fortíssima censura social, e não protestam: o corte dos benefícios fiscais para as pessoas com deficiência passou praticamente em silêncio, neste país onde a legislação europeia sobre barreiras arquitectónicas não é cumprida. Para extorquir mais dinheiro às pessoas com deficiência, o Estado deveria, no mínimo, oferecer-lhes condições de vida dignas - e a base dessa dignidade é o acesso igualitário ao espaço público. Portugal continua a esconder os seus deficientes - sabendo perfeitamente que entre eles estão alguns dos mais valorosos portugueses, medalhados, empreendedores, capazes de ir muito mais longe do que a maioria dos cidadãos ditos «normais», e sabendo também que este tipo de pessoas (orgulhosas, dinâmicas, vitoriosas) nunca se queixam nem aceitam mostrar-se como vítimas, pelo que se torna fácil tirar-lhes regalias ou sobrecarregá-las de dificuldades. Nada disto é novo - Portugal sempre enxotou os seus melhores, para as naus, para a cadeia ou para o exílio. Já o padre António Vieira, há quase quatro séculos, alertava para esta cegueira nacional - mas no país democrático e europeu em que é suposto vivermos ela torna-se afrontosa, e tão desesperada que chega a sacudir das cinzas o fantasma do tal ditador que nos convenceu a mantermo-nos pobrezinhos, lamurientos e resignados.

No combate ao défice, vale tudo - inclusive fazer com que as vítimas de agressão paguem a assistência médica, caso o agressor não se prontifique a fazê-lo. Se um cidadão recorrer às urgências hospitalares por maleita própria, paga apenas a taxa moderadora. Se for parar às mesmas urgências em consequência de uma sova dada por outrem, ou convence o seu agressor a pagar a despesa, ou paga ele mesmo o valor da consulta (que ultrapassa os cem euros). Ora, os agressores têm uma estranha tendência para desaparecerem depois da obra feita; não ficam para recolher os louros nem para pagar a continha do hospital. É a humildade lusitana. Com a altíssima conta-corrente de violência doméstica em vigor, das duas uma: ou as cidadãs pagam os tratamentos ( porque continuam a ser elas a liderar o top da violência doméstica, logo seguidas pelas crianças), ou desistem de se tratar. De uma forma ou de outra, o Estado arrecada - se não de imediato, pelo menos a médio prazo, com a morte das vítimas, que, sucessivamente espancadas e caladas, por certo não durarão até à pensão de reforma. Se isto não é um incentivo claro à ocultação da violência doméstica, não sei o que é. No Estado, em vez de estímulo e exemplo, encontra-se desprezo, deselegância e exploração dos mais fracos. Na semana em que se comemoraram os 50 anos da Europa Unida, o Presidente da República Portuguesa excluiu das celebrações o seu antecessor Mário Soares - apenas o homem que conduziu a integração europeia de Portugal, em tempos mais do que conturbados. Nesta mesma semana, visitei uma querida amiga de 80 e muitos anos na Casa do Artista, um sonho solidário tornado realidade pela entrega de Armando Cortez e Raul Solnado - o grande Solnado que, com outros artistas (como Manuela Maria e Carmen Dolores), todos os dias inventa formas de melhorar a qualidade de vida dos habitantes da excelentíssima Casa, com escassos financiamentos. Enquanto o Governo nos encandeia com Allgarves de futuro fausto e vai aumentando as contas de doentes e violentados, é na sociedade civil que encontramos alento para continuar a respirar em Portugal.

in Expresso

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