quarta-feira, fevereiro 21, 2007

O sacrilégio de Verlaine e o meu amor por Rimbaud

Encontrei hoje no baú de recordações esta biografia de Arthur Rimbaud (já referido aqui) que tinha escrito para o número 2 da revista RNAmensageiro. Sem mais delongas e até porque o texto já é grandito, aqui fica:

O Sacrilégio de Verlaine
e o meu amor por Rimbaud


Quem é afinal esse rapaz raro, dotado de uma lucidez tão precoce, ao mesmo tempo perturbante e transparente, que escrevia silêncios e anotava o inexprimível?

Nascido em Charleville em Outubro de 1854, Arthur Rimbaud foi um poeta meteórico, surgido num rasgo de revelação prematura e eclipsando-se tão vertiginosamente como houvera surgido. De facto, o seu espírito criativo é de tal maneira efémero que o essencial da sua obra se compreende apenas entre os 15 e os 19 anos, tendo mesmo acabado por abandonar a escrita aos 21 anos, mas não sem antes mudar o rosto da poesia.

Rimbaud teve poucos amigos. Vítima da tirania materna, Arthur desde cedo se revelou um mutista tímido que vivia a diferença: a diferença de uma homossexualidade latente; a diferença de uma arte em busca da sensação primitiva, da aventura existencialista. Uma realidade única.

Quando era pouco mais que um miúdo percorria as ruas de Charleville, acompanhado pelos três irmãos, Fréderic, Vitalie e Isabelle, escrevendo a giz nas paredes e nos bancos de jardim: “Merde à Dieu”. Aluno brilhante, Arthur ganhou o primeiro prémio no Concurso Académico do Colégio de Charleville, em grande parte devido ao apoio e encorajamento do seu professor Georges Izambard, e mais tarde também ele, como que em gesto de retribuição, acabou por homenagear a pequena cidade, ao fazer dela lenda.

Arthur foi um visionário, o poeta que ousou ver mais além, o poeta que ousou penetrar no roseiral dos filósofos, onde tempo e espaço são apenas um. Ele não foi apenas uma sombra inconstante que se limitou a pavonear-se durante a sua hora em cena. – Não: Rimbaud foi muito mais e várias foram as gerações que nele descobriram o fogo acutilante da palavra. Considerado um dos precursores do futurismo, consegue beber-se no automatismo da sua escrita sem controlo a magia de um amanhã que certamente irá nascer – por exemplo quando ele escreve: “A ciência: a nova nobreza! O progresso. O mundo avança! Porque não haveria ele de girar?”.

A escrita de Rimbaud é quase uma síntese autobiográfica: a sua poesia não é reflexo do artista, mas memórias de uma vida incandescente que via nas palavras a própria salvação – ele é antes de mais poeta de si mesmo. Lábil, desconexo; boémio, herege; muitas vezes rutilante, outras clarividente; dotado de uma loucura poética espasmódica que tantas vezes contribuiu para a sua tortura, mas também para o seu triunfo. Os seus poemas são uma epopeia de expressão e sentimento, iluminações que exploram os limites da linguagem, um evidente anseio de absoluto. E talvez seja esse o seu maior legado: a abertura de novos horizontes.

E da escassa obra destacam-se aquelas que pela sua nitidez quase cristalina sejam talvez o melhor exemplo do espírito indomável de Arthur: Iluminations e Une Saison En Enfer. Uma Temporada No Inferno nasceu durante o período de convalescença febril de Rimbaud (aos 19 anos!), consequência do fatídico fim da sua relação amorosa com Verlaine, encerrada com a prisão deste após ter disparado duas vezes sobre o amante. Este é o texto de um sobrevivente que se vê envolvido numa tempestade em que ressaltam sentimentos como a inocência e a culpabilidade, o relato demente e revelador de uma alma perdida. O inferno! O Livro Negro! Prenhe de sensações e visões fragmentárias, são as contradições e o experimentalismo gritante que mais sobressaem neste livro, sofisma ensaístico do veneno interior. Iluminações é um conjunto de poemas em prosa, resplandecentes e erráticos, gravuras simbólicas de um espírito aventureirista, visões coloridas de um amanhã. Inaudita, com tudo em si, esta é uma obra povoada de êxtases e fanfarras, de suavidade e harmonia. O verdadeiro alvorecer de um rapaz raro, o despertar de um inventor perturbante – “Beijei a madrugada. Era Verão.”.

A partir de 1973, Rimbaud dedica a sua vida ao esgotamento do corpo, a fuga a uma realidade que não a sua. Abandona a escrita e parte em busca de conforto para o espírito atormentado; mas nunca o encontrará. Viaja por Chipre, Arábia e Abissínia, envolve-se no comércio do ouro, café, marfim, armas e, segundo alguns, escravos, mas tudo isso não passam de desajeitadas tentativas para enriquecer. E da aventura africana só regressará para morrer. Capitula a 10 de Novembro de 1891 no Hôpital de la Conception, em Marselha, onde lhe fora amputada uma perna. Mas há muito que Rimbaud estava morto: no olhar “de um azul pálido inquietante” (como mais tarde Verlaine escreveu) apenas existia o vazio de alguém que já tinha atravessado as portas do inferno. Tinha então 37 anos, e tal como em tudo na sua vida também na morte foi precoce.

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